Caça Incessante

O sol já está se pondo, e o vento frio atravessa o corpo de Ale'ek sem piedade. Ele está um pouco distante do Habitat 21, na Estação Sandra Feliciano. Entretanto, o clima de Marte por si só é bastante hostil, o que faz com que os poucos que criam coragem de sair das proteções da cidade humana logo se arrependam de tal. As constantes e terríveis tempestades de areia causam medo em qualquer um, é claro. Mas para o mestiço, isso não realmente importa. Não nesse momento, já que lhe foi designada mais uma missão.

Ela consiste em pegar um homem suspeito de traição à Aliança e interrogá-lo, ou até mais que isso. Mas como é acostumado a fazer isto, este não é bem o problema. O problema, é que o homem procurado não parece estar em lugar nenhum. Não estava na cidade, e como não poderia ter fugido de maneira alguma, ele só poderia estar em algum lugar no imenso deserto. Com toda aquela areia no ar e entrando em seus olhos, seria difícil completar a missão, ainda que ele já tenha andado muito. Ainda assim, sabe que precisa completar a missão, e tudo que sabe sobre seu alvo é que ele é um homem kroyvisiano, não mais tão jovem.

Por mais que ande, Ale'ek não parece chegar a lugar algum. O clima, mesmo com todas as proteções usadas pelo homem, ainda machuca a sua pele e até respirar naquela atmosfera dói. Mesmo que já faça algum tempo desde que deixou as proteções da Estação, ele ainda pode vê-la da distância em que se encontra no momento.

Porém quanto mais adentra no deserto, menos vida ele vê. Mas por mais resistente que o homem procurado seja, um ser vivo não consegue avançar muito por ali e, devido ao tamanho do planeta, seria impossível atravessá-lo fácil. Caso o mestiço procure, talvez encontre um sinal de que alguém esteve ali.

— Aqui é Akir da sede da Aliança em M... você consegue me o... sinal pode ter problemas. 

Felizmente, os aparelhos que carrega ainda parecem ter sinal, ainda que pouco. Já distante do local habitável do planeta, Ale'ek conta apenas com o sinal provindo dos satélites espalhados pela galáxia. A voz que ele ouve é desconhecida, mas transmite segurança.

O pirata demora alguns minutos para receber uma resposta, visto que seu aparelho também está prejudicado pela areia. Quanto mais ele avança no deserto, mais ele se distancia da civilização e mais se perde também.

— .... desconhecidas.... emboscada... — É a única coisa que compreende, e a voz do oficial quase não é audível.

Na confusão de sentidos que o deserto mortal causa, Ale'ek pode perceber um estranho zumbido em seu ouvido. Ao mesmo tempo,  é como se a tempestade de areia se enfurecesse cada vez mais e de todos os lugares parece surgir uma estranha silhueta humanóide numa região quase inabitável.

No limite de sua consciência, Ale'ek pode ver uma silhueta se aproximando rapidamente com uma arma na mão. Se não fosse por sua visão apurada, o pirata provavelmente seria surpreendido pelo golpe.

Os sentidos de Ale'ek apenas se confundem mais, ao ponto do zumbido em seu ouvido se tornar insuportável. Ao mesmo tempo, sua visão foi se deteriorando como se os grãos de areia preenchessem todo o comprimento de seus olhos. O ambiente ao seu redor foi lentamente se esvaecendo até chegar ao ponto de simplesmente desaparecer. Em um instante, o pirata se viu num limbo infindável.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

— Agente #8226450 acordado, simulação concluída. Em geral seu desempenho foi ruim, então vale a pena dedicar mais horas ao estudo do que divertir-se ao brincar com os órgãos reprodutores das fêmeas. Lembre-se: sempre recue ao adentrar zonas inabitáveis e priorize receber informação de seus superiores. Apesar disso, a atitude ao abordar o emboscador foi impecável! Coma de maneira mais saudável também, há um pequeno acúmulo de gordura na região dos pneuzinhos. Para mais informações, consulte meu terminal no fim do corredor.

Ale'ek vê-se em um casulo de simulação da Aliança, bem no final de um teste monitorado. O feedback que acaba de receber provém de uma voz sintética muito parecida com uma real, pertencente a maior e mais complexa IA já projetada. SIDA (Sistema de Inteligência Destinado à Aliança), apesar de contar com uma programação um tanto quanto excênctrica, auxilia não só militares mas todo o Aglomerado de civis que fazem parte do tratado.

A porta desse casulo enfim se abre, revelando toda a sala projetada ao redor. Nos corredores, diversos outros agentes que acabam de passar por outras simulações também partem da sala, alguns felizes e outros decepcionados. Apesar disso, nada mais é do que um exame de rotina.

Aos poucos, Ale'ek recupera suas memórias que foram filtradas para aquele teste, afim de não influenciar nas decisões do agente e mantê-lo focado. No mesmo dia mais cedo, todos receberam a terrível notícia de que um ataque terrorista acabara de afetar civis que celebravam um festival chamado Dança dos Astros. Um grupo pequeno de agentes foi acionado para uma missão de emergência para encontrar os culpados, enquanto que o resto estava sendo submetido àquele tipo de teste. De um jeito ou de outro, muitos desconfiam que uma guerra está prestes a acontecer entre a Aliança e a ordem rebelde.

No caminho, Ale'ek sente muitos olhares de admiração ou até respeito. Isso porque sua história de vida é quase que uma lenda contada como um telefone sem fio pelas costas do assassino, muitas vezes aumentada e exagerada. Ainda assim, nada impede que alguns desconfiem deste por não ter uma origem militar como muitos outros soldados.

Tradicionalmente, muitos superiores do batalhão da Aliança são humanos, uma vez que o Pentágono controla muito da força militar do Aglomerado direto da Terra, e o sargento que supervisiona aquele exercício não é diferente. Como a maior parte dos soldados humanos, este usa não um nome próprio mas um codinome conquistado através da convivência ou de algum ato. Neste caso, o homem de porte atlético tem "Sargento Buck" pintado acima do símbolo da Aliança em sua roupa.

Buck não é como os outros soldados de alta patente que Ale'ek já conheceu. Apesar de ser inquestionavelmente hábil e conhecedor de muitas táticas militares, sua conduta é quase sempre a de um grandiosíssimo fanfarrão. Muitas vezes convida seus soldados para noitadas de bebedeiras e mulheres, e mais de uma vez já foi advertido por deixar o batalhão mais cedo para "compromissos pessoais". Ninguém apresenta uma irmã ou prima para ele.

— Sofremos um ataque terrorista ontem, pessoas estão morrendo com uma doença misteriosa, perdemos seis homens em uma missão de emergência e você quer lutar? Coragem da porra. — Ele brinca entre uma tragada e outra em seu cigarro. — Muito bom. Ale'ek, não é? Diz aí, prefere ir fazer serviço de macho ou de Garesiano?

BUCK:

— Serviço de Garesiano é bichisse, porra. — Diz enquanto ri e dá mais um trago em seu cigarro. — Garesiano é aquele maluco que, enquanto você ta comendo a xota da sua mina, ele tá estudando os nervos do clitóris e blá-blá-blá. Preciso saber que tipo de cara você é no rolê, sacou?

Alguns soldados passam pela dupla enquanto conversam, rumando os vestiários do local. A maior parte deles parece apenas ter comparecido ao quartel para realizar o exame proposto e já retornar para suas casas. Poucos sentem-se corajosos como Ale'ek a ponto de se oferecer para uma missão num momento tão conturbado como aquele.

— E eu sei mais ou menos sobre você, mas pra ser sincero eu tenho preguiça de ler essas fichas. Bom, eu preciso de homens em três lugares diferentes: patrulhando o hangar central da cidade pra ter certeza de que não vão atacar Gradopolis de novo, investigando e estudando o local da explosão pra entender o tipo de armamento que o inimigo têm e, se você quiser ficar longe dessa merda toda, ir numa operação anti-drogas em Tuntau. — Buck dá uma pequena pausa para lançar uma bituca de seu cigarro no canto mais próximo do chão. — Nenhuma delas vai ser divertida de se fazer, mas como ninguém quer mexer a bunda, a recompensa provavelmente vai ser boa. Escolha tua droga que eu te pago uma breja na volta se fizer bem feito.

— Então você é desse tipo. Massa. — Ele finaliza quase que ao mesmo tempo que termina o cigarro e lança-o em um lixo próximo num gesto tão habitual que evidencia que ele faz aquilo todos os dias. —  Como você sabe, o símbolo da Inteligência, força-tarefa Garesiana, foi explodido ontem a noite em uma operação orgulhosamente assumida pela Reconquista. O curioso é que Gradopolis conta com um excelente esquema de defesa e nosso sensor anti-mísseis não foi acionado para impedir essa merda. Por mais que o ataque tenha sido ruim prum pessoal e tudo mais, é uma ótima oportunidade para conhecermos o tipo de armamento do nosso inimigo e aprender como neutralizar sua força.

Conforme fala, Buck aciona um botão em sua armadura que abre um painel de HUD holográfico a sua frente, no qual ele digita algumas informações e preenche uma tabela, registrando a missão para Ale'ek e designando sua posição.

—  Seu trabalho vai ser se reunir com dois cientistas que já encaminhei pra lá e descobrir como diabos eles passaram pelo nosso sistema. Desse jeito saberemos que não vamos ser explodidos enquanto compramos pão. Gradopolis conta com você, a Aliança agradece seus serviços e toda aquela lenga-lenga. Boa sorte, Ale'ek.

—

— Eu sei lá pra que você precisa da porra de um médico pra investigar uma explosão, amigo. — Ele resmunga, ao mesmo tempo que digita novos comandos no seu painel. Este agora exibe uma lista de oficiais filtradas com conhecimento em medicina, mas todos os nomes estão sinalizados como indisponíveis. — E você não vai ter de qualquer maneira, estão todos ocupados tentando salvar a vida das pessoas que foram infectadas com a coisa misteriosa ontem. Mas você pode ir ao hospital de Gradopolis aqui perto e ver se tem alguma sorte você mesmo.

Finalmente ele pressiona um novo botão e a tela de HUD recolhe-se para dentro de sua armadura até enfim desaparecer com um bipe. Logo em seguida, uma soldado jovem, provavelmente recruta, passa por Buck e ambos trocam olhares sugestivos.

— Bom parceiro, meu trabalho aqui era monitorar a simulação, e ela já aconteceu. Fico feliz que tenha se voluntariado a ajudar mas, se não tem mais nenhum questionamento, eu tenho coisas para fazer essa noite.

Uma chuva fina porém persistente cai pelas ruas de Gradopolis, combinando com o semblante das pessoas que andam pelas ruas. Semblantes desolados, caminhares vagarosos e frustração: todo tipo de sentimento negativo ou deprimente define a situação da maior metrópole do Universo, que passa pelo seu pior momento desde sua fundação.

Aquelas pessoas não são como Ale'ek. Elas jamais conheceram o verdadeiro sofrimento, a verdadeira dor, e estão apenas aprendendo o que é perder algo agora. Alguns perderam parentes e amigos, mas a maior parte daquelas pessoas, como parte da Aliança, perdeu algo bastante importante: a honra.

E toda essa melancolia pode ser observado nos motoristas que aguardam impacientes que o tráfego melhore, ou nos raros pedestres que ainda enfrentam a chuva antes de chegar em casa. Até mesmo nos oficiais da guarda, colegas de Ale'ek, que patrulham o perímetro agora com a segurança mais reforçada. Muitos só queriam a tranquilidade de estar em casa junto a suas famílias. 

O endereço indicado por Buck não é distante, fica localizado numa praça conhecida próxima ao centro da metrópole. Empenhados em auxiliar como podem na cicatrização daquela ferida deixada pelo atentado, dois cientistas já estarão a espera como foi ordenado. 

Ambos conversam entre si, aparentemente já conhecidos ou talvez até colegas. Se trata de um Garesiano e uma Jhayesiana, ambos identificados em suas vestes como "Nobab" e "Konira", respectivamente.

— Eu já te disse milhares de vezes, Nobab: não precisa ter medo de soldados. Eles tão aqui pra nos proteger, se liga. E muitas vezes são bonitos e musculosos. — Suspira a jovem enquanto olha pro horizonte chuvoso.

— S-Sim, eu já sei! A-A q-qu-questãoéqueas vezes elescarregam armas g-gra-grandes e eu conheço um cara que têm certeza absoluta que quase morreu pra um. S-Sabe, eu soutotalmente contra armas. — O alien olha ao seu redor para ver se alguém o ouve, e não consegue concluir uma frase sem embolar as letras e parecer um idiota. 

Pelo jeito a Aliança está bem desfalcada. Essa é a "equipe" com quem Ale'ek terá que trabalhar.

Konira:

Nobab:

Por conhecimento geral, Ale'ek sabe que o Garesiano é provavelmente bem jovem. Sabe-se que a expectativa de vida dessa raça é de quarenta anos devido a sua alta velocidade de pensamento e intensa atividade cerebral, então Nobab tem provavelmente seus seis a sete anos de idade. Já na infância, porém, as capacidades mentais de um Garesiano superam às de muitos adultos de outras raças.

— S-Sim senhor. — Diz o pequeno enquanto engole em seco. Brevemente olha para sua companheira pelo canto do olho, claramente com medo do líder.

— Meu nome é Konira! — A garota exclama, tentando quebrar o clima que aquele homem misterioso trouxera. — E esse é Nobab. Nós dois trabalhamos no Instituto de Ciência Militar de Gradopolis, e é um prazer ajudá-lo.

O Garesiano dá um cutucão na garota enquanto Ale'ek não os vê, irritado principalmente por ela ter revelado seu nome. Ainda assim, a jovem Jhayesiana parece disposta a tentar ter uma interação benéfica com o comandante daquela tarefa que parece tão importante.

— O meu amigo aqui conseguiu achar umas coisas legais. Fizemos estudos na atmosfera acima de nós e encontramos uma quantidade incomum de hidrogênio e hélio que provavelmente devem ter subido após a explosão de ontem, então esses são provavelmente componentes dos explosivos. Mas isso não explica como passaram por nosso sistema anti-aéreo.

O local que Ale'ek analisa é aonde ficava um símbolo de ferro sólido, representando os Garesianos. Não sobrou praticamente nada deste além de algum ferro fundido dentro de uma cratera praticamente uniforme no chão. Quanto as queimaduras causadas no revestimento do solo, já foram removidas por uma equipe de limpeza.

Como sempre atrapalhado, Nobab não pode deixar de se alarmar e até dar um pulo de susto quando seu nome é mencionado pelo líder da missão. Mesmo que tente passar despercebido deste, seu medo de soldado uma vez mais fala alto.

— N-Não, me desculpesenhorporfavor eu devia ter feito isso! — Ele dispara, já se desculpando por algo que nem fez. — M-Mas pelo que temos em registro, o apagão afetou todos os sistemas de energia da praça. Se tivermos algo registrado, será de um dispositivo externo de alguém que estava filmando o evento enquanto ele acontecia.

A garota torce o lábio, chateada por Ale'ek não ter se apresentado para a dupla. Aquela é de fato a primeira missão oficial deles, mas ela certamente não imaginou que seria tão difícil de se comunicar com aquele que a comandaria.

— Eu tentarei comunicar-me com a defesa aérea e conseguir esses dados agora mesmo, senhor. — Ela diz de maneira limpa, bem mais clara que seu companheiro.

A equipe é claramente inexperiente e talvez até despreparada. É curioso que sejam conferidos cientistas tão novatos e um líder com um escalão não muito alto para uma tarefa que em teoria é tão importante. De uma maneira ou de outra, Ale'ek parece estar conseguindo usar o que tem.

Já empenhada na ordem recebida, Konira encontra-se num canto mais isolado, digitando comandos em seu dispositivo móvel e conversando com alguém através deste. Por isso, ela mal repara na aproximação de Ale'ek, que pressiona o pobre e jovem Garesiano que busca sua ajuda com os olhos, mas não consegue conectar-se com a companheira.

— P-Pirata? Me parece um título muito bom de uma p-pessoa muito boa, senhor... — Ele engole em seco, desesperado por estar sozinho com o soldado. — Nós apenas fomos notificados sobre a tarefa. Se não foi você quem designou, deve ter sigo algum superior, não é? Sendo assim, não há como saber se nós fomos escolhidos a dedo por ele ou se ele simplesmente requisitou dois cientistas e a IA quem selecionou a nós.

Diante do pirata, Nobab tenta manter a calma e agir naturalmente. Gotas de suor, porém, escorrem frequentemente por sua testa grande e cinza e denunciam seu nervosismo perante o alto militar diante de si.

— E-Eurealmentenãosei mas... — Ele dá uma pausa, olhando para os lados. Talvez para buscar um lugar pra fugir, ou talvez para certificar-se de que não está sendo ouvido. — Eu sinto que os maiores cientistas estão sempre designados a outras coisas menos importantes, de fato. Mas eu não sei de nata sobre isso, eu juro!

Enquanto isso, ainda sem olhá-los diretamente, Konira exclama a distância.

— Acabo de contatar a defesa anti-aérea. — Ela diz enquanto digita em seu aparelho. — Muitas pessoas trabalham por lá durante os turnos, é um setor bastante organizado. Eu acho pouco provável que seja negligência da área, seria uma negligência de dezenas de soldados capacitados.

— S-sim senhor, desculpe porainda n-nãorealizar atarefa p-pe-pedida pelosenhor. — Ele responde de pronto à Ale'ek, desesperado com a ideia de aborrecer o homem.

Konira toma a frente calmamente, abaixando-se um pouco para colocar sua mão sobre o pequeno ombro do amigo, buscando confortá-lo. Um sorriso sutil é dirigido ao garesiano, é como se dissesse que ela cuidaria disso.

O pequeno então toma liberdade para dar alguns passos apreensivos para trás, dirigindo-se a um canto em que pudesse verificar as informações solicitadas sem se sentir tão pressionado. Assim, a garota volta-se para o comandante da missão mais uma vez, com mais segurança.

— Pelo que nos foi informado, o local permanece intocado até o momento, senhor. Assim que as pessoas que frequentavam o festival foram evacuadas, os Oficiais tornaram o acesso a esta área restrito e o mantiveram assim para que a análise seja mais fácil. — A loira explica, aproveitando para passear com os olhos pelo cenário do ataque terrorista e analisá-lo mais uma vez.