Honra em sangue.

— Ô merda hein. Me viram cedo demais. —  Comentou baixo consigo. Como não era possível se identificar nem nada, Kitty procurou algum lugar pousável. Havia sido vista, não tinha motivos para se esconder, do contrário, só pareceria ser uma ameaça.

Uma vez em solo saiu da nave e fechou-a atrás de si. Abaixou o capuz da roupa, assim veriam se tratar de uma Okro.

— Eu sou Isath. Podem me chamar de Isa. — Até que era mesmo, era um pedaço do nome. — P-posso me esconder por aqui? — Olhou o céu. Não era como se não aguentasse uma chuvarada dessas mas é sempre bom ter abrigo né?

— Eu já estou fazendo o favor de colocar armas ilegais nas suas lindas mãos. — Falava com o rapaz de cabelos brancos, tirando as armas e munições que roubou do Okro morto enquanto passava para ele com certa discrição, suspirando logo em seguida. — Aparentemente ele queria me tirar daqui, ficou tão alheio à minha presença que deu as costas para falar algo nos rádios. Já deu para entender que eles não gostam de estrangeiros por aqui, então... E bom, digamos que estamos numa ilha rodeada por águas que claramente parecem ácidas. Uma única entrada e uma única saída, o que significa que estamos fodidos.

Vez ou outra ela olhava para os lados, atenta ao que poderia acontecer em seus arredores enquanto conversava com Heylel. Voltava sua atenção a ele, buscando um local com mais sombra para evitar o excesso de luz solar em sua pele.

— Tudo bem, eu sou fodida quase toda noite. Mas acho que eu devia te cobrar o preço integral pelo infortúnio que está me causando. — Inicialmente falava meio seca, mas logo em seguida sorriu e o empurrou de leve no ombro, como se tentasse quebrar aquela cara amarrada dele. — Vamos tentar sair daqui, ainda tem comunicadores naquela torre e pode ser de alguma utilidade. Quem sabe fingir a voz de alguém e pedir para virem buscar a "pobre nativa que veio parar aqui sem querer" possa servir de algo. Mas precisamos pensar rápido, este lugar não me agrada. Como eu já disse, estarei por perto observando e vou para onde vocês forem, ou pelo menos não ouse esquecer que estou aqui! — Resmungou antes de voltar a se esconder, usando alguns panos em torno do pescoço para cobrir o próprio rosto. — Agora volta para os seus amigos antes que eles achem meio estranho você de conversa com uma Okro que não conhecem. Melhor inventar qualquer desculpa a meu respeito.

Ao entregar as armas, também deixou com ele sua bolsa com alguns de seus pertences. Talvez fosse melhor que ele cuidasse daquelas coisas, mas ponderou. — Toma, fica com a minha bolsa. Mas eu te peço que tome cuidado com algumas coisas aí dentro, você não vai querer sacar alguns brinquedos daí na hora de uma briga. Pode soar meio... desconfortável, mas é sua própria conta e risco. — Comentou de relance com aquele bom e velho sorriso sacana que ela esboçava na maior parte das vezes.

Ao perceber que ele queria colocar algo seu pescoço, ergueu os cabelos escuros para que facilitasse a vida do rapaz. Ouviu suas informações a questão do pedido de que ela voltasse para as naves, o único problema era o simples fato de sair dali. Talvez devesse falar com alguém, mas aquilo era o problema após a chuva. Igualmente olhou para cima e notou as nuvens carregadas, suspirando breve. Não era necessário ser um grande gênio para entender que num lugar onde o ar contém metais pesados e dificulte a respiração e a água é contaminada com coisas talvez mais prejudiciais, bom, é de se imaginar que a chuva não seja a coisa mais agradável do mundo. — Conversamos sobre o quanto você vai me pagar em favores depois. Até mais, amorzinho. — Dizia enquanto se escondia próxima a alguns telhados dali enquanto Heylel voltava para seu grupo carregando seus pertences.

Os olhos arregalaram quando viu o quão ácida era a chuva ao vê-la corroer uma barata que passava ali, e concluiu que precisava de um abrigo o mais rápido possível. Não teria tempo de ficar conversando em barganhando um lugar àquela hora, estava muito em cima. Olhou a torre de vigilância e lembrou do cadáver nela. Bom, era o que tinha para aquele momento e não perdeu tempo. Saiu correndo por entre telhados e locais cobertos com seu deslocamento especialmente avantajado, pulando na escadaria como um gato numa cortina. Subiu veloz antes que mais pingos de chuva caísse e se entocou na cabine de comando. Olhou aquele Okro morto e o excesso de sangue manchando o chão e suspirou, depois procurou observar o teto. Ele parecia resistente o suficiente, afinal se não fosse provavelmente todo aquele equipamento de rádio estaria destruído. Apesar de pouco comuns pelo clima meio desértico, as chuvas deveriam ser perigosas o suficiente para terem suas residências com os telhados reforçados, e com parte do que pertencia ao exército ou polícia local, não seria diferente. Arrancou as roupas do cadáver e usou-as para secar o excesso de sangue dali. Mas pela sujeira e poeira talvez não fizesse real diferença. Paralelo a isso, fechou as janelas e as trancou como conseguiu, e também arrastou uns armários na frente delas para caso o metal que as revestia não fosse suficiente, mas deixou uma única janela semi-aberta. Voltou a olhar o cadáver enquanto suas lâminas desciam do compartimento em suas costas, bem onde o cabelo e as roupas largas escondiam. Fatiou o morto em pedaços menores, um belíssimo presunto.

Assim que começasse a chuva mais forte, jogou os pedaços de cadáver pela única janela semi-aberta de forma que o ácido fizesse o trabalho de limpeza. Tomava cuidado para não ser atingida por gotículas, procurando usar parte do uniforme do Okro morto como proteção para sua mão enquanto arremessava as partes na chuva. Não era muito bonito ver e fazer aquilo, mas não tinha muita escolha. Era mais fácil inventar uma história e se fazer de tonta do que ter que explicar uma pessoa morta no meio da sala. Ao terminar, o que demorou alguns instantes, ouvia o ácido corroer parte do telhado e se escondeu embaixo das mesas que sustentavam os rádios, considerando ali um local perfeito para caso o teto não aguentasse o suficiente. Também seria propício estar escondida e aparentemente com medo caso alguém resolvesse subir naquela torre, mesmo que tivesse recolhido as escadas para que elas também não fossem destruídas e o acesso à torre completamente inutilizado.

— Eu me pergunto se em alguns anos a chuva não levará tudo. — Olhou as bordas da ilha e em como elas danificavam o chão. Não seria uma questão de tempo até que o acido ganhasse mais e mais território? De todo modo, Kitty não esperava ser respondida, aquela era somente uma observação jogada ao vento.

— Pode-se dizer que eu não venho aqui há... Muitos anos. Mais do que eu posso contar. — Não contava com a sua última partida do local, é claro. E era uma ótima justificativa para parar "perdida" por aqui. — Eu "cheirava a leite" quando ouvi falar de vocês a primeira vez, mas nunca pisei neste local antes. — Não se recordava deles agindo com mais força no passado, algo evidenciado na expressão confusa da Okro. — Houve alguma coisa que eu deveria saber?

Pensava em algum plano de ação enquanto isso, mas era difícil conseguir algo no momento, enquanto estava vigiada. Por hora, se atualizaria da situação.