Fisgado pela pesca

O velho parece relaxado, talvez até um pouco sonolento. Ele não mostra qualquer sentimento adverso à presença de Finn e prefere não avisar as crianças de sua chegada ainda, principalmente por saber que decidiriam brincar com o polvo. Além disso, a julgar pela maneira que o pescador se aproximou, era algo pessoal.

— Claro, senhor Finn. Pegue um pouco de chá se quiser, não precisa ter pressa. O único jeito de eu sair daqui é se eu morrer, não é? — Ele brinca enquanto aponta para o recipiente com mais chá para que o pescador se sirva.

— Acho bom conversarmos lá fora, enquanto eles brincam aí. É algo sério... Eu acho — falava Finn, agindo preocupado.

Enquanto isso, Finn abanou o ar para Octavio, e este entendeu que devia se esconder para as crianças não a verem.

O semblante do velho mudou. Fazia tempo que não ouvia algo de tamanha seriedade, visto que seus dias eram sempre recheados de emoções tranquilas e alegres com as crianças de quem cuida. Ainda que apreensivo, porém, o pescador conquistou sua confiança.

— Ahm... tudo bem, sem problemas. — Ele murmura ao mesmo tempo que deixa sua vasilha no chão e apoia-se para conseguir se levantar. — Há algo de errado?

Ele bate a roupa amarrotada e põe-se a disposição para deixar o local, iniciando uma caminhada no sentido oposto enquanto deixa os pequenos brincarem.

— Então — começava, quase sussurrando — Uma nave militar estacionou em Denegram — sua voz ia aumentando conforme saíam da gruta.

Agora fora, ele se sentia mais a vontade.

— Possui um símbolo em vermelho e eu perguntei por aí, parecem que são conhecidos como Rebeldes. Pelo o que o senhor me contou ontem, podem estar atrás de alguém...

Ele cerra o olhar. Em todos aqueles anos vivendo em Ashinara, jamais vira uma nave militar passando pelo planeta. Aquela informação é de fato intrigante, mas ele tarda a entender o que têm a ver com ela.

— Você acha... que eu posso ter sido algum inimigo deles? É realmente estranho isso estar aqui.

É visível a preocupação do velho com os movimentos inquietos de suas mãos e dedos. Não só por sua vida mas também pelo planeta que ele agora considera uma residência.

— Eu pensei nisso, o senhor disse que não sabe quem fez isso contigo, então... Foi o que eu pensei e vim às pressas aqui. Podemos tentar nos esgueirar a achar uma nave pra fugir, eu ajudo vocês! — falava ele, se empolgando um pouco no final, para tentar convencê-lo de que era uma boa ideia.

Na verdade, ele sabia que poderia ter nada a ver com isso, e se tivesse, ia ser uma coincidencia tão grande que nem precisaria acabar com o seu alvo, os outros fariam isso por ele. Então, ele apenas queria levá-los para longe de Ashinara. Acabar com a vida pacífica e iniciar uma turbulenta, mesmo que uma turbulenta boa. Queria transformar as crianças em algo, e não deixá-las orfão em um planeta que prega a bondade nascente da alma.

✵
O velho entra em choque. Seu primeiro instinto é olhar para as crianças, distantes, que brincam despreocupadamente. Depois ele olha para a entrada da gruta, recém-decorada como uma atividade divertida proposta pelo próprio idoso e que agradou de fato os pequenos.

Sua visão volta arrastando-se para Finn. Ele agora o encara diretamente, e a angústia é visível na íris profunda de seus olhos.

— Sabe, senhor Finn... —  Ele começa, com a voz um pouco falha devido a emoção que sente. Durante toda a sua vida desde que "acordou", ele teme por este dia. — Tudo o que eu faço é por essas crianças que me chamam de "vovô". E elas me chamam assim não só porque eu não sei dizê-las o meu nome, mas porquê é isso que sou de fato.

Ele vasculha seu longo sobretudo e encontra um pequeno cofre portátil selado com uma senha de quatro dígitos, um modelo comum que funciona como uma carteira mais segura da época. Após digitar a palavra "Vovô", a caixa se abre e mostra todo o seu conteúdo: uma carta escrita em papel.

— O experimento do qual eu fiz parte foi um fracasso. Eu, assim como todos os outros voluntários, não conseguimos levar uma vida nova sem saber quem fomos e o que fizemos por tanto tempo antes de "acordar". Eu fui um dos poucos que não se suicidou, e o motivo é essa carta aqui.

Com a mão trêmula como sempre por causa da doença, ele entrega a carta. Aquele de fato pode ser o primeiro pedaço de papel que Finn vê há muito tempo devido ao desuso do material, que perdeu espaço para a comunicação digital.

Ganni escreveu:

Prezado.

Minha esposa sempre me disse para escrever essa mensagem, mas a realidade é que eu nunca soube sequer como começá-la. Ela me sugeriu algumas palavras, mas vou fazer do meu jeito agora que ela está morta.

Eu e ela somos membros de uma resistência na Terra que se opõe ao atual modelo de governo subordinado a interesses estrangeiros. Apesar de tentarmos diariamente tornar nossa luta pacífica, somos sempre repreendidos com força e por isso nossa disputa vêm se tornando perigosa.

Sabem onde estamos e já não há mais como se esconder. Você é a única pessoa que não está envolvida, e isso é porquê eu jamais te conheci. Eu sou seu filho.

Tenho dois filhos: Donny, de dois anos e Ella, de seis meses. Eu não sei quem você é, mas a única pessoa a quem posso confiar o que restou da minha família é justamente você. Espero que não seja de fato uma má pessoa, e que você não abandone essas crianças como abandonou a mim.

Junto com essa carta, lhe envio um pen drive com a localização atual das crianças. Por favor, seja para elas o protetor que você não foi comigo. Abrace-as como jamais me abraçou. Eu não pediria a você se realmente tivesse outra escolha.

Obrigado.

O velho, ainda atônito, sente os olhos marejar enquanto relembra o momento que recebeu a mensagem. A esperança de finalmente ter um sentido na nova vida o trouxe a tona uma vez mais, e esse sentimento agora o confunde intensamente.

— Eu sempre prometi a mim mesmo que me entregaria quando as pessoas que eu lesei viessem buscar por mim. É justo, não é? O problema é que... agora, diante dessa situação, eu não quero me afastar da família que eu amo. Eu não quero deixá-los sem ninguém. Isso não seria justo. —  Ele uma vez mais alterna seu olhar entre Finn e as crianças. — É injusto eu fugir com as crianças usando da sua ajuda, pois há pessoas procurando por mim. Também é injusto eu abandonar os meus netos para me entregar e deixá-los sem a figura que admiram ainda que não conheçam em totalidade. Talvez, eu deva apenas me manter na gruta e deixar que o destino faça seu trabalho e escolha o que há de acontecer comigo. O que você acha que devo fazer, Finn?

✵

— É totalmente justo você vir comigo. O senhor não sabe muito sobre o mundo, e eu sei um cado. A gente pode se ajudar, eu quero vê-los crescido também, eles são legais, oras! Haha! — dizia ele, com um pouco de veracidade em sua fala.

Ele dava alguns passos e encostava a mão direita no ombro esquerdo do velho — A gente pode começar novamente. Novas roupas, novo nome. Porque de resto já é tudo novo! Haha! Por favor, tenta!

Um sorriso franco se abre nos lábios secos e já esbranquiçados do idoso. Com sutileza, ele faz uma breve reverência ao abaixar a cabeça perante ao pescador que viera em boa hora para ajudá-lo num momento como aquele. As crianças eram novas e ingênuas e ainda não sobreviveriam sozinhas caso ele fosse procurado por alguém. Se Finn não tivesse aparecido, o idoso estaria a mercê de seu algoz.

— Muito obrigado pela sua ajuda, Finn, de verdade. Eu vou reunir as crianças e conversar com elas. Acho que são muito novas para entender o motivo da mudança, especialmente Ella, então vou tratar como uma viagem por hora.

Ele então se vira para juntar o que poderia carregar e alertar os netos. Mora naquele planeta há seis anos e certamente vai ser difícil se adaptar em outro lugar, mas a presença das crianças, como sempre, o dava perspectivas.

— Tudo bem, ficarei ali no rio esperando. Nós vamos para lá no Octavio! — e assim o fez.


Octavio pulou até o rio e assim fez Finn em seguida, subindo no enorme polvo. Eles ficaram ali esperando e quando as crianças chegassem, iria ajudar elas a subir no polvo, assim como o velho. Iria estar fingindo estar super feliz de ter convencido o velho a viajar.

As crianças parecem um pouco cabisbaixas e tristes por partir. Apesar de terem desejos aventureiros, a gruta é sua casa e despedir-se dela definitivamente pela primeira vez era de fato bastante dolorido e inesperado.

— Droga, vovô. Nem pra deixar a gente levar o Fred. A gente achou ele hoje e já temos que dizer tchau?!

— Eu já te expliquei, Ella. — Começa Donny com sua mania de sabichão novamente. — Ele pertence a esse planeta e não sabemos se ele se adequaria ao espaço. Além disso a gente vai ficar mais um pouco com o Octávio!

Ele tenta animar a irmã por julgar que isso é sua responsabilidade, mas seu semblante também não transfere muita animação. Os dois não parecem alegrar-se nem mesmo na presença do pescador com quem se conectaram nos últimos dias.

— Olá, senhor Finn. — Dizem em uníssono após um toque do idoso.

— Bom, estamos prontos. — Diz o velho que carrega uma saca com as poucas coisas que a família precisa levar. — As crianças ainda não se adaptaram a ideia da "viagem", mas ainda vou conversar melhor com elas. Vão perceber que o senhor Finn está fazendo um grande favor pelo vovô um dia, não?

— Vamos galera, vai ser divertido! Vou mostrar pra vocês como é legal conhecer os animais de outros planetas! — dizia, enquanto ajudava cada um a subir no Octavio.

Quando todos subiram, estava um pouco apertado e por isso Finn foi la na frente, sentado na cabeça de Octavio. Estando todos prontos, Octavio usou do rio para chegar até Denegram. Iria primeiro para a velha, pedir um pouco de roupa para todos, para depois encontrar alguém que fornecesse uma ajuda para a viagem.

O movimento no santuário parece estranho. Diferente da visita anterior, onde muito comércio acontecia, muitos negócios parecem fechados e muito menos pessoas caminhos pelo local. Um pequeno agrupamento acontece mais a frente, próximo a nave que Finn viu anteriormente.

Nesse agrupamento, pessoas que vestem trajes negros e compartilham do mesmo símbolo se reúnem com nativos que trajam armaduras brilhantes, que por sua vez está estampada com o logo que enfeita todo o vilarejo de Denegram. Os alienígenas se tratam da Datsu, braço da Reconquista que assume orgulhosamente o ataque terrorista que aconteceu na maior metrópole da Aliança dias atrás. Os nativos são parte dos Paladinos Resolutos que a vendedora relatou para Finn anteriormente. Os dois grupos parecem reunir-se pacificamente.

Enquanto isso, os poucos comerciantes que continuam ali (a velha é um deles), permanecem em alerta diante da situação.

Ele ia até a senhora novamente, com toda a sua "família".

— Olá de novo, senhora! Haha! — dizia, alegre, fingindo que nada ali estava acontecendo. Queria que as crianças não reagissem com tanto medo — Vim procurar mais roupas, mas agora pra todos eles — dizia, dando espaço para mostrar as duas crianças e o velho.

A velha, até então apreensiva, sorri ao ver o idoso que acompanha Finn. De fato, parece mais feliz de ver o velho do que o pescador em si, que ela momentaneamente ignora.

— Oh, eu conheço esse bom sujeito. Quando se mudou pra cá estava que nem barata tonta pra lá e pra cá com essas crianças. Eu que ensinei como cuidar dos pequenos. — Ela diverte-se ao se levantar e acariciar a cabeça dos dois, que retribuem o carinho pela idosa. — Só faz tempo que não desentoca daquela gruta. Vem ver os outros, velho caduco.

— Olá, senhora Zaiwa. Pedimos para o vovô nos trazer aqui esses dias mas ele tá com as costas tudo doída de novo! — Exclamou a garota, fulminando o velho com o olhar por alguns instantes.

— Isso porque ele não se exercita. Já falei pra sair daquele buraco de bunda onde vocês vivem, mas ele insiste em se esconder da vida. Muito bem, podem pegar o que precisarem agora e a gente se acerta depois. Com vocês não tem dívida!

— Ah, se já se conhecem, nem preciso ter tanta vergonha em pedir que considere aquele segundo peixe para ajudar nas roupas, né? HAHAHA! — disse ele, sendo extremamente amigável. Sua risada no final fora um pouco alta e podia chamar atenção.

Ele olhava para as crianças e para o velho, tinha que manter tudo tranquilo sem denunciar que era uma fuga desesperada.