Bom dia, #7104.

Franzi a testa, sentindo a irritação se misturar em arrependimento por ter feito aquilo. Mas respirei fundo, procurando me controlar, permanecendo de olhos fechados.

"Como eu poderia saber? Você só me conta o que julga necessário, quando necessário. Não sou um programa pra me adaptar tão rápido. Mas proponho uma trégua. Preciso da sua ajuda. Mas antes quero, preciso, te entender melhor. Sem filosofias, eu sou de exatas."

Miyano procurou por registros mais antigos no tablet. Por mais que fosse invasão de privacidade, a criança não dava a mínima para isso.

Quanto mais informação conseguisse, melhor. Não havia dado muita atenção para os brinquedos da neta, mais preocupado em apagar a localização de qualquer sinal que um aparelho tecnológico seria capaz de reproduzir naquela casa.

Talvez estivesse sendo paranoico ou cuidadoso demais, mas era assim que havia passado a sua infância: Apagando rastros junto aos pais.

Depois de feito, apenas enrolou-se no lençol e jogou-se no sofá, exausto pelo dia longo.

Não levou muito tempo para pegar no sono.

Talvez em algum outro momento, no passado, eu teria ficado revoltada e começado a destruir tudo ao meu redor. Parte dessa revolta se dava a inconformidade de estar longe de uma vida normal. Mas ele estava certo. Eu não estava mais viva. Todo o tempo que eu tinha agora era apenas como um erro de sistema. Apenas me cabia aproveitar e usar da melhor forma.

"Entendo. Então eu consequentemente vou saber mais sobre você com o tempo. Mas essa não é mais minha prioridade. Só preciso de uma coisa, que coopere comigo. Você não tem nada a perder, certo? Se eu morrer você tem muitos outros no meu lugar como mesmo disse. Por isso quero que me empreste seu conhecimento e poder para o que estou prestes a fazer. Se fizer isso prometo que terá muitos dados interessantes para analisar."

Eu me sentia estranhamente calma para alguém que possivelmente estava fechando um pacto com o diabo. Mas a minha alma já estava condenada. Eu também não tinha nada a perder. Não mais. Não quando eu nem mesmo estava viva. Mas se eu estava ali era por um motivo, e faria meu sofrimento valer a pena.

Senti um nó na boca do estômago se formar e uma tontura, comprometendo minha postura inabalável. Mas apenqs respirei fundo e fiz possível para me acalmar.

"Fechado. Mas precisa tomar cuidado para que não vejam meu rosto, isso iria prejudicar meus planos. E... Não faça mal a Miyano. Ele não merece isso. Com isso você pode usar esse corpo."

Senti o suor escorrer da linha testa pelo rosto, até na nuca. Mas não deixei o nervosismo tomar controle.

As anotações de Burnes são o que se espera de um cinquentão ferido. Rascunhos amorosos bregas, documentários para se assistir mais tarde, listas de compras e resumos entediantes de seu dia a dia melancólico. O máximo que se pode tirar está na primeira página, que aparentemente revela o código de um cofre que fica na casa.

Ele retorna após uma hora com uma grande saca no banco traseiro de seu pequeno carro elétrico. Após dar uma balançada na cabeça de seu bonequinho de decoração, ruma a casa num semblante mais vívido por saber que encontraria alguém lá. A solidão vinha matando-o aos poucos, e saber que teria gente em casa o reconforta.

— Olá crianças! Voltei. — Ele diz num raro sorriso enquanto deixa as coisas em cima do sofá da casa. Fato é que ele de fato tem idade para ser pai ou avô do Celes e Miyano. — Não consegui coisa muito melhor do que você têm, mas é bem bonito. Ah, eu comprei uma barra de chocolates pro menino e peguei algo com um amigo que você talvez goste.

Não notei quando exatamente cai no sono, mas acordei com o baque da porta de Burnes entrando. Ainda sonolenta, bocejei e me levantei aos tropeços. Fiz um sinal próximo aos lábios para que ele falasse baixo.

¬ Miyano está dormindo. E... Ei não sou uma criança!

"Não mesmo! E também não tem mais 20 anos. Feliz aniversário, mestra!"

Pisquei algumas vezes, erguendo o braço pra ver a imagem da I.A com um chapéu de papel de confetes voando ao seu redor. O hologramas vinha com uma mensagem "Feliz aniversário!' escrito em letras brilhosas. Com um 'ah' notei que era mesmo meu aniversário. Poucos dias antes eu estava na nave reclamando dos planos de Miyano e Cody sobre uma festa na nave. Fiquei com a boca aberta, encarando a mensagem e incapaz de dizer algo. Então apenas desliguei a manopla e voltei a olhar pra Burnes.

¬ Está ótimo. Podemos modifica-la se precisarmos. Obrigada.

— Isso aqui é de uma amiga minha da aeronáutica. — Ele diz enquanto estende uma pequena caixa preta que conta com um número de série militar, mas sem outra identificação. — Ela me deve um favor e eu achei que ia ser legal te dar depois que perdeu sua nave. Espero que consiga encontrar um uso pra isso porquê sou um troglodita com tecnologia.

O conteúdo é um pequeno drone pilotável através de uma conexão wireless com uma manopla ou outro sistema digital. Sua função parece espionagem uma vez que não há uma arma acoplada e sua estrutura é básica ainda que bem construída.

— Bom, está quase na hora do seriado que eu gosto. Se precisar de mim, vou estar bem aqui.

Peguei as compras uma por uma, até chegar na caixa. Um som de surpresa saiu de forma involuntária quando vi o conteúdo com olhos vidrados. Sorri enquanto admirava os drones e analisava sua programação.

- Isso é incrível! Obrigada Burnes.

Fiquei tão focada e grata pelo presenté que quase me esqueci do que precisava fazer. O sorriso que surgiu com espontaneidade logo morreu. Acendi com a cabeça, esperando ele se afastar para analisar os trajes.

Ainda estava no início do sono, apenas adormecido, então não seria surpreendente se acordasse com o barulho da conversa na sala. Espreitou os olhos, buscando identificar o que Burnes havia trazido, mas a luz inesperada na manopla de Melroa fez a criança imediatamente descer as pálpebras, sentindo como se a córnea queimasse pela exposição repentina à luz.

Usou as mãozinhas para tampar o rosto, virando-se de costas para o sofá para bloquear a luz, enquanto sussurrava um "feliz aniversário" antes de voltar a dormir.

A armadura trazida não parece muito mais resistente do que a usada atualmente, mas é mais discreta e confortável. Talvez até reduza um pouco mais do potencial dos disparos que a atinjam.

— Fico feliz que tenha gostado. Eu te ensinaria como pilotar mas não faço ideia de como se faz isso, então acho que vai ter que aprender sozinha.

Os pequenos drones parecem atingir grandes velocidades devido ao modelo dinâmico e a direção sensível, mas não estão equipados com qualquer inteligência artificial e tampouco sistema bélico. Parece simples, mas depende de como será usado.

Virei o rosto para observar Miyano, dando um sorriso ao vê-lo voltar a dormir. Então voltei minha atenção, analisando o drone.

¬ Ah isso não vai ser um problema, cinco minutos com o manual e eu já vou saber mexer. Hana pode me ajudar também. Agora vai descansar, vou adiantando algumas coisas enquanto isso.

Com a palma da mão humana, o empurre pelas costas até seu quarto, mas sem machuca-lo.

¬ Depois podemos pedir comida quando acordar.

Já passaram-se dois dias desde o comunicado geral que La Pucelle enviou através da mídia. Desde então, a figura inventada vem dividindo a atenção dos jornais com a de Starcaller, e sem dúvidas ameaça grande parte da população. Nesse contexto, cada vez menos pessoas são vistas nas ruas e muitas se mudam às pressas de Gradopolis.

Com o passar do tempo, ela pode ver algumas manchas de sangue ou rasgos em suas roupas, mas certamente não se lembra de fazê-los.

Burnes está também preocupado com as manchetes, mas não chegou a confrontá-la quanto a figura. Sabe-se, porém, que uma tentativa de rastrear seu IP foi bloqueada pelo sistema de segurança de Miyano.

A criança estava atenta a qualquer rastro desde que Melroa decidira dar sequência ao plano e discursar um blefe tão ousado. Seu objetivo atual era evitar que rastreassem o IP, e, mesmo que conseguisse bloquear algumas tentativas, ainda não achava seguro permanecer lá.

Também havia percebido que Melroa costumava sair durante a madrugada e retornar com as roupas rasgadas ou manchadas de sangue.

- Hm, recentemente eu bloqueei uma tentativa de rastrear o IP, mas, honestamente, acho que deveríamos partir o quanto antes, ou Burnes poderia acabar tendo problemas. - Falou com calma. Por mais que não gostasse do homem, reconhecia os riscos que o veterano estava tomando ao ajudá-los.

Estávamos sentados na mesa de jantar de Burnes. Depois que chegamos ajudamos a botar ordem ali para que se parecesse mais com uma casa de verdade. Espalhados pela mesa estavam peças tecnológicas e algumas anotações. Eu estava cochilando sentada sem perceber quando a voz de Miyano me acordou. Apoiei as duas mãos na mesa, procurando me equilibra pra entender o que estava acontecendo. — Certo, vamos partir logo. Realmente ficar fixo em um lugar, ainda mais em Gradopolis, não parece uma ideia muito inteligente.

Passei a mão humana em meu rosto, massageando-o. Estava sonolenta, as saídas do Administrador estavam me custando mais do que eu imaginava que iam. Respirei fundo e me levantei, indo atrás de café. — Mas precisamos ser cautelosos. E nossos recursos ainda são escassos. Vou tentar esvaziar mais uma conta... Eu já volto.

Junto com a caneca, fui em direção ao banheiro. Era o único comodo da casa que podia usar para ter privacidade para falar com ele sem parecer que virei uma adepta ao Budismo. Tomei alguns goles do líquido amargo e me sentei no chão, encostando as costas na parede. De fato parecia que eu estava dormindo ou meditando. E as vezes eu sentia como se dormisse mesmo.

"Senha: ****. Vim cobrar o favor."

"Obrigada pela dica atrasada, como sempre. Serei mais cautelosa. O que fiz até agora foi apenas jogar uma pedra no mato para ver o que saia, confesso que foi um pouco decepcionante. Mas vamos direto ao ponto. Devo concluir que você adquiriu, ou já tinha não me importa, experiências com lutas. Correto?"

"Não estou pensando em partir pra violência. Ainda. E auto defesa é um instinto que aprendi a não ignorar. E estou ciente que não consegue melhorar minha condição física porque estou a beira de um colapso e, se foi justo com o que disse, em apenas 6 horas de uso eu estou exausta. Mas você consegue otimizar o que já tenho, buscar conhecimentos que estão arquivados no fundo do meu cérebro. Ou seja, me torna capaz de fazer coisas que sei, mas não sou capaz. Esse é meu primeiro favor. Quero que me ajude a me infiltrar na SIDA. Depois disso irei embora de Gradopolis, por hora. Em segundo..."

Minha respiração parou por alguns segundos antes de continuar, parte de mim ficando enojada com a continuação.

"Quero que execute Burnes."

Respirei, aliviada com a facilidade na cooperação do Administrador e por suas habilidades.

"Um momento é do que preciso. Vou instalar um vírus meu para poder vigiar os dados e tomar o controle aos poucos. Acha ser possível?"

Com a continuidade do assunto, acabei me encolhendo aos fatos jogados em mim. Não tinha medo da morte, mas da falta que ela deixava. Claramente não tinha superado a morte de Mora.

"E o que sugere? Burnes sabe de tudo. Eu não queria fazer isso e você sabe tanto quanto eu. Mas se deixa-lo sozinho ele vai definhar, ou pior, a aliança chegará até ele e o torturará. Se é um ser tão esclarecido, como sugere que eu lide com isso? Não posso pedir para me seguir quando ele é um tiozão carente! E ele não confia plenamente em nós. Eu estou em zona de risco desde morri, não acho que uma ou duas pessoas a mais me caçando vá fazer diferença."

"Eu também estou ciente disso, sempre estive. Fui para reconquista por conforto, porque eu sabia que não duraria um dia na aliança. Não com o meu ir..."

Travei. Meu irmão sempre fez coisas suspeitas que estavam além da minha compreensão. Ele nunca foi presente, mas sempre me pedia favores estranhos quando o fazia. Olhei para minha manopla, indo até o email que compartilhávamos. Meu 'testamento' ainda estava ali. E sem resposta. Engoli em seco, como se engolisse um remédio azedo.

"Vou guardar essa possibilidade para invadir a SIDA para mais tarde. De preferência quando eu não estiver tão perto da zona de conforto deles."

Fiquei por poucos segundos, tentando reformular o plano que demorei pra fazer, mas que o Administrador destruiu em segundos.

"Você já me usou duas vezes e até agora não consegui achar uma boa função para você. Vejo que estou em desvantagem nesse acordo. Se pudesse apagar a memoria de Burnes e devolve-lo a segurança da sede da aliança seria alguma coisa."