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A cara do doutor transmite apenas frustração e nervosismo. Ele claramente não se sente a vontade e não larga por um segundo sequer o seu pequeno espelho, o qual por vezes confere e responde com uma reação de puro desgosto. É claro que detesta sua aparência.
Dentre um suspiro e outro, senta-se em um pequeno banco e indica a cama a seu lado para Melroa deitar-se. Sem dizer nada por enquanto, apanha alguns instrumentos em um compartimento ao seu lado e começa a pensar no que ela pode ter.
— História doida. Se nada aqui der certo, vou te encaminhar pra nossa psicóloga. — Ele diz. Não num tom grosseiro, mas sim de alguém que está com a cabeça em outro lugar. — Deita aí e eu vou ver você, mas já adianto que não tem nenhuma doença que faz você desaparecer por três dias e coloca alguém manipulando sua cabeça. Aliás, você por acaso não teria pimenta, né?
Ao ver que precisaria me deitar, retirei meu casaco e blusa, deixa do a mostra de forma relutante a cicatriz que começaca com um enorme círculo afundado na base de minhas costas e se seguia quase até os ombros. Franzi a testa ao ouvi-lo, sem saber se me sentia irritada ou confusa.
¬ Não tenho não. Eu primeiro apaguei, fui raptada e do nada acordei numa... Sala? Argh enfim.
Ambos pareciamos deslocados, cada um com suas próprias cicatrizes. Isso me deixava um pouco mais tranquila e comportada. De certa forma estávamos no mesmo barco. Deitei de barriga virada para cima, esperando.
O doutor se aproxima para uma análise minuciosa aos ferimentos da rebelde. Quando ele o faz, ela pode reparar que sua fisionomia é bem mais estranha do que parece.
Há algo errado com sua pelagem. Por vezes se movimenta, como se estivesse perto de um ventilador, e revela sua pele. Essa por sua vez está num constante movimento, como se alguém a esticasse e empurrasse, mas nada de fato acontece. Isso tudo enquanto ele a analisa, sem que encoste no próprio corpo.
— Isso... é muito estranho. Preciso que tire todas as suas roupas. — Ele diz, com seu semblante de fato mostrando bastante preocupação e surpresa. Em um instante, alcança um painel digital e digita um comando para trancar a porta do consultório. — Não se preocupe, não vou olhar nada que não deva. Gosto da outra coisa.
Tentei não olha-lo muito fixamente, mas sabia que estava falhando. A curiosidade era maior que qualquer coisa e só notei que podia passar a impressão errada quando ouvi seu pedido.
¬ Nossa, reconfortante.
Levantei da maca, retirando meus sapatos e as meias, seguidos pelo short... Travei na hora das roupas íntimas. Esperei, rezei para que meu rosto não refletisse o constrangimento que senti. Mas por fim retirei todas as peças e as deixei dobradas num canto. O máximo de desconforto que deixei escapar foi o canto dos lábios enrugados. Minha não mecânica abria e fechava ao lado do meu corpo enquanto o mantinha ereto, sem saber se deitava ou não novamente.
Os olhos de Jubo se arregalam. Rapidamente, ele apanha um dispositivo ao seu lado e tira uma foto da região das costas de Melroa, pegar de sua nuca até a lombar. Em seguida, entrega-a o dispositivo com as mãos trêmulas, buscando mostrar a imagem.
Na imagem, a pele da rebelde está manchada com diversas concentrações arroxeadas, parecidas com hematomas. Elas estão um pouco fracas, mas são muitas - e são grandes.
— Quando alguém morre, a falta de circulação faz com que o sangue sofra efeito da gravidade e se aloje nas partes inferiores do corpo, e por isso essas concentrações roxas se formam. Elas estão fracas agora, e isso quer dizer que sua circulação voltou ao normal. Mas sua mera presença... — Ele para por um momento e engole em seco. — significa que você esteve morta por pelo menos uma hora.
Subitamente, um barulho alto. Jubo não parece ouvi-lo de maneira alguma, uma vez que ele apenas volta a analisar as manchas na pele de Melroa. Na realidade, o som parece se formar dentro da própria mente da piloto, como quando conversou com o tal Administrador.
O movimento ao redor parece fluir melhor agora. A conversa com Liandry distrai Bastião e isso acalma os transeuntes que temem sua presença. Vê-lo num contato simples e comum com alguém ameniza um pouco a imagem assustadora que um membro da Datsu costuma trazer.
— Sim. Todos nós lutamos. — Ele reflete por um momento. — Mas eu acho que já fui como você. Diga-me, lutar por nada não torna tudo... vazio?
Sua pergunta é sincera, desmanchando um pouco da figura monstruosa que o espadachim costuma levar.
Eu não sabia o que estava acontecendo, mas a ansiedade só aumentava enquanto eu observava a reação do médico. Olhei para o dispositivo em suas mãos, estreitando os olhos na tentativa de acompanhar. No fim acabei soltando uma risada seca, aguda demais, ela denunciava o nervosismo que começava a tomar conta de mim.
¬ Mas eu estou viva! Como pode dizer iss...
Ergui as mãos até meus ouvidos, minha boca se abriu num grito que não chegou a sair. Curvei meu corpo para frente, como se pudesse retirar aquilo da minha cabeça.
Os altos ruídos não perduram por muito tempo. Foi uma questão de segundos, algo como um rápido flash de uma câmera, mas o fato de serem tão altos e profundos podem de fato incomodar.
O doutor está sem dúvidas espantado. Jamais presenciara um caso como aquele, e tem mais evidências de que ela esteve morta conforme analisa seu corpo. Mais e mais sinais vêm aparecendo, embora a maior parte deles já esteja fraco.
— B-Barulho? — Ele indaga, analisando primeiro seus ouvidos. — Não teve barulho algum. Você está me ouvindo bem?
Ele poderia enquadrá-la num caso psicológico, mas as outras evidências tornavam sua condição fora do comum. Como ela toca a cabeça, Jubo propõe-se a analisá-la.
Jubo derruba seu equipamento. Ali, no couro cabeludo de Melroa, escondida por seus cabelos longos, há a coisa mais estranha que ele já vira em toda a sua carreira como médico até então.
— Caham... s-senhorita... — Ele tenta recompor a postura enquanto abandona seus instrumentos médicos e se afasta para tomar um ar. — Na lateral esquerda de sua cabeça há uma cicatriz característica de um disparo de arma. Ela está bem regenerada, mas é inegável que você sofreu um disparo em seu crânio. É impossível que alguém sobreviva a isso, tampouco que seja reanimado. A morte cerebral, ainda com a medicina de hoje, é irrecuperável.
Agora eu entendia bem como bichos pequenos de sentiam com barulhos altos. Fiquei irritada, e as notícias seguintes não me ajudaram muito. Rapidamente cruzei a distância entre eu e o médico, segurei sua camisa pela gola e fiz o que pude para balança-lo.
¬ E então? Eu estou viva! Estou bem aqui! O que quer dizer com isso?!
Tudo isso durou poucos segundos, pois logo me dei conta do quão fora de mim eu estava e o soltei. Sentia minhas mãos tremeram. Mas por quê? Eu não estava mais com raiva. Medo. Como uma serpente pegajosa pude sentir meu corpo ser envolvido por puro medo. Eu tinha morrido? Então como eu estava ali? Ao invés de resposta eu só consegui mais perguntas. Então catei minhas roupas, colocando cada peça de forma apressada.
¬ Eu também posso escutar uma voz na minha cabeça. Não é loucura minha. - Disse quase rosnando.
¬ O que aconteceu comigo?
Eu já não sabia se perguntava para o médico ou para a voz que escutei ao acordar. Estava desorientada, não sabia o que fazer.
Jubo sinaliza negação com a cabeça, ainda chocado demais para fitar Melroa diretamente. É visível que seu choque é tão grande ou até mesmo maior do que o dela.
— Eu sinto muito mas não faço a menor ideia. Posso fazer mais exames em você amanhã se quiser, mas por hora este é o diagnóstico e eu não posso te dar mais respostas. Desculpe.
Dentro de sua cabeça, nada. Um silêncio completo agora impera tanto na sala de consulta quanto na própria mente de Melroa, que não se preenche mais com nenhum tipo de som. Dessa vez, seus pensamentos estão completamente limpos e, dessa maneira, ela pode notar que não estavam até então. É como se um zumbido estivesse imperando por ali, tão persistente e ao mesmo tempo discreto que nem podia ser notado.
ー Nem tanto, só torna as coisas mais divertidas - Liandry respondeu para Bastião com um sorriso tão radiante que o deixaria cego se ele olhasse para ele e pudesse enxergar.
Nem consegui olhar para ele enquanto ouvia uma resposta que já temia saber. Encarei o chão, que parecia não estar ali realmente. Me senti grogue por poucos segundos até retomar o controle de mim mesma. Por alguma razão irritante, minha mente estava mais clara.
ー C-Claro. ー Murmura Jubo, ainda um pouco transtornado e frustrado com a situação. Não é todo dia que se vê uma pessoa que morreu entrando em seu consultório. Pior ainda é não ter nenhuma resposta para o fenômeno. ー Siga-me.
Ele caminha pelo corredores, agora um pouco mais movimentados passada a tensão inicial da chegada de Bastião. As pessoas ainda parecem acuadas e com medo de expor suas opiniões em voz alta. O caminho até o pátio principal onde Mora ainda aguarda é preenchido por burburinhos e cochichos.
ー Então você prefere desse jeito? ー Ele murmura. Não exatamente como uma pergunta, mas um pensamento alto para si mesmo. Custava a compreender a garota. ー A Datsu é uma organização honrada que luta por um objetivo claro. Se você não compactua com ele e nem com nenhum outro, por quê então nos admira?
Desta vez o cenário não me incomodava ou me despertava curiosidade. Segui o médico até Mora, esperando que estivéssemos proximos o suficiente. O ar parecia mais gélido, algo que não tinha sequer reparado antes. Vumihe Boik era instável, frágil. Os babacas da Datsu sabiam bem o que estavam fazendo.
¬ Preciso falar com Sra. A sós.
Então voltei a olhar para o médico. Tentei soar mais gentil e menos furiosa como quando o empurrei, sentindo-me parcialmente culpada agora que eu no olhava de novo.
¬ Pode enviar uma cópia para ela do que acabou de me mostrar?
ー Claro que sim. ー Jubo responde prontamente e apanha seu technophone. ー Vou levar a outros estudiosos que conheço, ver se já viram algo parecido. Estou empenhado em tentar te trazer algumas respostas. Imagino que deva ser difícil para você passar por tudo isso.
Mora prefere economizar o tempo de digitar e esperar que a voz robótica processe e reproduza o comando dado, e por isso apenas "fala" quando necessário. Diante do pedido da garota, ela apenas sinaliza algo para um assistente próximo e se afasta da multidão, rumando uma parte mais isolada da garagem.
Dei meu melhor sorriso para Jubo, seguindo Mora logo em seguida. Esperei até estar num canto isolado, longe de olhos curiosos, longe da Datsu.
¬ Preciso de um dispositivo de comunicação, o meu sumiu pra variar. Eu tenho que descobrir quem fez isso comigo. E principalmente o que eu fiz nesse tempo. Por isso preciso da ajuda dos dois, eu...
Engoli em seco, procurando uma forma menos dolorosa de expressar aquela verdade. Alguns rostos apareceram em minja mente, bordados com o tempo. Meus irmãos e irmãs, Miya, Maya, Heylel. Até o irritante Cody. Todos se foram ou me abandonaram. A imagem do meu irmão mais velho ficou por mais tempo que as demais, fazendo com que o restante da frase soasse mais amargurada do que triste.
¬... Estou sozinha. Jubo, você será responsável pelo meu atestado de morte. Mora preciso que oficialize minha morte.
O rapaz se espanta com a situação. Quando o faz, sua pelagem estranhamente adquire uma coloração mais escura, apenas durante a fração de segundo em que seus olhos se arregalam e seu corpo instintivamente recua um passo.
— C-Como assim atestado de morte? E-Eu não posso fazer isso, não seria nem um pouco ético e--
Mora ergue seu dedo indicador na direção dos lábios de Jubo, num sinal claro para que ele se cale. É visível que ela se comporta como uma mãezona para todos ali na estação, e eles a reconhecem sempre como tal.
Recuando a mão novamente ao perceber que o médico a obedece, ela digita um comando no programa que permite que ela se pronuncie.
Fiz a força que pude para engolir o nó que se formava em minha garganta. Me obriguei a relembrar cada momento desgraçado da minha vida que me levou até aquele.
¬ Eu não estava mentindo quando disse que não deixaria ninguém me usar. Eu não sei o que eles queriam fazer comigo. Mas sei o que fizeram. Melroa está morta, morreu com um tiro na cabeça. E com ela qualquer coisa que me prendia. Preciso de um novo rosto.
Com o tempo pude sentir meu coração desacelerar do ritmo frenético de antes. Meus músculos também relaxaram. Quando voltei a falar sentia meus sentidos mais claros do que nunca.
¬ Alguma coisa está acontecendo, a reconquista e aliança não são mais as mesmas. Todos podem notar isso. E eu vou descobrir o que é.
Mantive o olhar fixado no de Mora, sem desviar ou vacilar.
Jubo desespera-se. Olha de um lado pro outro e não pode crer com o quanto Mora está fria e impassível diante daquela situação. Logo a pessoa mais razoável que ele conhece, não demonstra uma reação sequer diante daquele caos.
— S-Senhorita Mora, nós não podem--
Antes que ele termine, a voz robótica o interrompe. O comando já havia sido digitado, e a loira apenas o olha de canto enquanto pede silenciosamente por calma.
— Irei cobrir você no que precisar contanto que retire o que disse. — Depois disso, a voz robótica cessa e o que toca é uma gravação da voz da própria Melroa. — "... Estou sozinha. !"
Pisquei algumas vezes, sem saber se estava surpresa ao ouvir minha própria voz ou com o impacto que ela tinha como continuação da frase de Mora. Senti que todo meu esforço em me manter firme foi por água abaixo nesse momento. Meus olhos encheram de lágrimas e minha voz ficou embargada de uma emoção que não consegui diferenciar.
¬ Obrigada.
Limpei os projetos de lágrimas com as costas da mão numa tentiva de me recompor. Então me virei para o médico, pegando suas duas mãos e juntando-as perto do meu corpo.
¬ Por favor, preciso da sua ajuda. Você melhor que qualquer um viu o que fizeram no meu corpo. Não posso viver assim. Preciso que você me ajude.
— Desculpa, mas não posso te contar isso - Liandry disse sorrindo para Bastião — Acho que preciso ir ao banheiro, até depois Bastião - e ela saiu de fininho na direção do banheiro, entrando nele em seguida.
Ainda um pouco titubeante, Jubo cria forças depois que é levemente empurrado por Mora em direção a piloto, mais uma vez agindo como mãezona de todos. É evidente que ele não está contente com a situação, mas um pedido daquela mulher é sempre inegável. Todos sentem-se sempre em débito com ela.
— T-T-Tá bom, diacho. Vou rasgar minha ética profissional e fazer parte das suas tramóias, em troca de um pouco de pimenta em pó!. E nem tente me fazer decidir disso, Mora. Você sabe o quanto é importante pra mim!
Sua frase carrega um tom bem mais dramático do que deveria. Com os olhos marejados ele olha para a líder por cima dos ombros, apenas para receber uma singela confirmação em forma de um sinal positivo com a cabeça. Melroa poderia arranjar aquilo se iria viajar.
— Então tá, pimenta em pó. O que você quer que eu faça exatamente? — Ele pergunta, temeroso quanto a resposta.
Assunto: Re: Buraco negro - Vumihe Boik 
Sex Fev 01, 2019 4:53 pm
