Tempestade Solar - Khty

Já é noite, e Kitty está sentada no balcão de um bar qualquer. Os cidadãos de Shinar estão agitados, mas ainda assim a cidade parece muito morta. Talvez por conta da quantia de pessoas desnutridas e doentes, e pelos restos de construções que chamam de lar. A questão é que ninguém está aqui porque deseja, muito pelo contrário. Isto é tudo que resta para essas pessoas, a pobreza e a criminalidade. Mas não para a Okro, afinal, ela está ali por opção. Sua vida já fora recheada de miséria, e nada daquilo a surpreende mais.

Esta é a noite mais esperada há muito tempo dentro da Reconquista. A noite onde a Aliança toda se reuniria em Gradopolis para uma grande feira de tecnologia de ponta, para por um lado os comerciantes encherem seus bolsos e, por outro, os visitantes alimentarem seu consumismo ao máximo. Uma noite festiva, mas o ataque já ocorrera e a mulher nem fora chamada, quanto menos ficara interessada na oportunidade. Todos lá sabem, afinal, que ela gosta mesmo é de trabalhar sozinha, como sempre foi. Com todos os preparativos para o atentado, já há algum tempo que a atiradora não recebe nenhuma missão.

Um aparelho ultrapassado preso à parede do bar, que por si só já está caindo aos pedaços, faz uma projeção em qualidade ruim de um pronunciamento dos líderes da Aliança. Este acontecimento em especial, causa uma revolta em todos os alienígenas dentro do local, que deixam de falar apenas alto para começar a gritar. Rodeada por canecas de cerveja vazias, apoiadas em um balcão sujo e empoeirado como o restante do ambiente, ela pode sentir o pequeno aparelho que lhe fora dado pela Reconquista e que lhe concede o acesso da IA exclusiva da Ordem, Ariete, vibrando em seu bolso e emitindo um toque que significa que há uma nova mensagem.

A garota pode sentir olhares de alguns em si conforme se direciona a nave. Afinal, jamais imaginariam ver tamanha tecnologia pessoalmente. Ainda assim, o caminho até o veículo é tranquilo e ninguém faz a menor menção de tentar entrar em seu caminho. Sua presença com uma coisa dessas já é poderosa o suficiente até para afastar os supostos criminosos daquela cidade.

Ao entrar no dirigível, as luzes são automaticamente acesas e, além disso, é projetado um enorme painel de HUD. Assim que a nave termina de se inicializar completamente e Kitty se apresenta, pronta para receber uma nova missão, uma chamada se inicia. Um holograma com o rosto de uma ciborgue humana surge em seu painel, sua expressão é séria, mas nada diferente do usual. A Okro já conhece esta mulher há algum tempo, afinal. É Arya, uma de suas superiores.

— Há muito tempo não nos vemos, não é mesmo 267? Pois tenho uma missão para você. Você está disponível, certo? Estamos com alguns problemas. — Anuncia a mulher, parecendo estranhamente preocupada, visto que geralmente parece fria demais. Parece se tratar de algo sério, afinal.

Arya:

A mulher suspira, se preparando para iniciar a explicação. Está sentada em uma cadeira, e seus dedos dançam pela mesa a sua frente, causando alguns barulhos quase imperceptíveis pelo impacto de suas grandes unhas contra a superfície. Reage às piadas da outra rebelde com um sorriso quase imperceptível, e apenas o faz por sentir alguma simpatia por Kitty. 

— Ótimo. Pois bem, há algum tempo descobrimos que havia um traidor entre nós. Quando descobrimos, ele conseguiu fugir, mas felizmente conseguimos rastreá-lo e descobrimos sua localização. Ele está em Jannu, lhe mandarei mais informações úteis através da Ariete. — Arya faz uma breve pausa, colocando rapidamente uma das mechas de seus cabelos loiros atrás da orelha. — O que torna esta missão mais importante, entretanto, é que o traidor tem uma forte evidência contra a Ordem. Não sei lhe dizer exatamente o que é, mas tudo que sei é que é algo importante. Portanto, sua missão é destruir essa evidência por completo e, claro, lidar com esse homem. Mas, como sempre, sem deixar rastros ou chamar atenção. Entendido? — Finaliza, encarando a atiradora diretamente nos olhos dessa vez, aguardando uma resposta.

A mulher parece satisfeita, embora sempre soubesse que a garota aceitaria a missão. Não consegue se lembrar da última vez que uma missão foi rejeitada por ela, mesmo as mais complicadas. Ela digita algumas coisas rapidamente em um painel de HUD ao seu lado, aparentemente as informações prometidas, antes de voltar-se a atiradora novamente para finalizar a chamada.

— As informações chegarão em breve. Muito bem, 267. Estamos contando com você, não nos decepcione. — Finaliza, antes da transmissão ser subitamente interrompida.

Após pouco tempo, o painel da nave apita. É a informação que estava esperando, afinal, porém ela contém apenas a localização do planeta indicado, e nada mais. Com a ausência de informações precisas, torna-se necessário começar logo.

Ainda que a ausência de informações precisas quanto ao traidor, a rebelde aceita a missão mesmo assim. O que tem para perder, afinal? E, uma vez que sua nave já está direcionada a Jannu, ela não tarda a decolar. O caminho até lá é bastante tranquilo, sem intercorrência alguma. As coisas parecem estar indo bem, afinal.

Kitty começa a perceber problemas apenas horas depois, quando já está próxima o bastante da superfície do planeta para analisar o local. A garota pode notar que, mesmo percorrendo vários quilômetros, não encontra zona de pouso alguma, o que lhe parece bem estranho. A maior parte dos planetas tem inúmeras, já naquele, o melhor que pode encontrar é um local razoavelmente deserto e sem muitas construções próximas. Só é possível pousar em um local como aquele pelo tamanho pequeno da nave da Okro, mas ainda assim, ela já pode imaginar que não seria uma tarefa fácil.

Muitos pilotos respeitados falharam ao testar pousar com segurança em Tuntau. O planeta é temido por muitos por ser completamente rudimentar e retrógrado, a ponto de não ter sequer uma pista de pouso. O pior é que se sua aterrissagem for mal-sucedida, o que acontece na maior parte das vidas, não haverão maneiras de consertar seu veículo. O planeta é quase como uma armadilha gigante no espaço, o que explica o motivo do seu alvo tê-lo escolhido como esconderijo.

Apesar disso, Jannu não é exatamente o que dizem nos documentários e nas redes sociais. O local é indubitavelmente o mais misterioso de todos os planetas conhecidos por conta de seus habitantes agressivos e movidos pelo combate. Apesar disso, a fauna e flora do lugar são riquíssimas a ponto de prender a atenção até mesmo de uma pessoa nada delicada como Kitty. Todo aquele cenário, porém, serve apenas como palco para uma matança constante.

Ao longe, ela ouve urros e gritos. Uma sangrenta batalha está acontecendo a poucos metros, e os guerreiros são violentos a ponto de ignorar uma espaçonave (algo quase nunca visto em Jannu) apenas para continuar com a matança. No meio disso tudo, a rebelde recebe uma nova mensagem.

Eu ainda estava de mal humor, mas suspirei enquanto encarava aquela paisagem estonteante. Não era muito a minha praia, lembrou-me algumas regiões em Tuntau antes de serem totalmente exploradas. Em outra situação teria me sensibilizado e parado um pouco para tomar ar puro... Enquanto jogava algo.

Como o ordenado, desliguei meu dispositivo e guardei-o entre minhas vestes. Nem precisavam me falar que eu não deveria olhar e eu sinceramente não sentia nenhuma curiosidade. Se tinha a ver com a Ordem, era melhor esquecer. Mais importante: Eu amo de lutas e apostas. E se precisava recrutar alguém nesse meio de nada, por que não alguém que eu já tinha visto combater?

Segui em meio aos sons, tomando um certo cuidado. Se ignoraram minha nave, provavelmente ignorariam uma garota perdida -e nada assustada, não consigo dissimular isso- por aí.

A principio evitei fazer barulho apenas para olhar o que se passava por trás de uma árvore.

Sem se deixar intimidar, a mulher aproxima-se de onde os Haytok estão brigando, e para eles é como se ela nem estivesse ali. Conforme aproxima-se, os urros praticamente bestiais tornam-se mais altos. Escondida atrás de uma alta árvore, Kitty pode perceber que sua presença ali é realmente ínfima perto daqueles monstros.

Algumas lutas ainda acontecem, mas a maior parte está mais distante da Okro. No centro dos corpos próximos a si, há um Haytok albino lutando contra dois outros. Seu corpo está machucado, mas ele não parece nem sentir dor. Os olhos do monstro brilham em fúria, está completamente entregue a esta batalha, e sua pouca racionalidade já parece ter se esvaído por completo.

Entretanto, o mais chamativo é o vermelho escuro que vê e o cheiro forte de ferro no ar. Sangue, muito sangue para todos os lados. Assim como cabeças decepadas, corpos sem vida e brutalmente. Kitty jamais ouviu falar de confrontos tão brutais, e em Jannu, não há um dia sequer sem lutas como esta. Em meio aos cadáveres, há algo que parece um pouco contraditório com esse meio selvagem. Sobre um dos corpos, há uma armadura diferente de tudo dali: tem um material extremamente polido e metálico, com luzes azuis aqui e ali. Não há dúvidas: tem uma armadura de tecnologia de ponta em um planeta completamente arcaico.

Apesar de vasculhar sua memória, a armadura encontrada pela atiradora nada remete a algum modelo especial já visto por ela na Reconquista ou na Aliança, parece na realidade um modelo bastante genérico. Não chega nem perto também a ser a melhor das armaduras já vistas pela mulher, mas é certamente a única tecnologia já vista por qualquer um dos Haytok que ali vivem.

A luta continua por pouco tempo, por incrível que pareça para quem assiste, o resultado parece improvável. O Haytok albino, ainda que especialmente irracional no momento, aproveita uma deixa dada por um de seus oponentes, que tenta alcançar uma arma próxima, para nocautear os dois em um único e poderoso golpe. Os perdedores permanecem estáticos e, a julgar pela brutalidade local, estão certamente mortos. Afinal, parece que eram eles que estavam em desvantagem desde o começo, pela força que o outro revelou ter. Assim que o combate acaba, o monstro parece finalmente se acalmar, e Kitty pode imaginar que sua racionalidade aos poucos deve estar voltando também.

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤVocê nota a mulher que acabara de chegar e começa a caminhar em direção à ela. Aquela armadura estranha, tal como o resto e o que eles representam não significa nada para o seu intelecto inferior. Sua mão se fecha lentamente, enquanto começa a se aproximar do rosto reptiliano da garota. Atacar-la é uma opção bem viável, pela sua falta de carisma.


ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ- VÁ EMBORA! - A sua voz é como um rugido que cospe junto uma grande quantidade de saliva sobre a face dela escorria. Sua baba era tão grudenta, talvez pela adrenalina do combate anterior, que era facilmente confundida com algum tipo de cola.


ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤVocê ergue seu corpo novamente e começa a andar em direção à algum lugar distante. Sua incapacidade de comunicação apenas é superior à sua incapacidade de se comunicar com qualquer ser vivo próximo à você.

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤVocê olha para trás, com uma certa fúria em seus olhos. Apenas bufa por entre as narinas e grita em alto e bom som.

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤSE FORTES TIVER - Sua incapacidade de fala, que mais o lembra um animal for compreendida por ela. Talvez as coisas comecem a andar no seu rumo, caso contrário, seus passos apenas continuam seguindo em direção ao horizonte.

Ainda é tarde no local onde estão. Como Jannu não têm divisões de territórios, sendo esses determinados através dos clãs que os dominam no momento, não é possível medir o fuso-horário ou se localizar corretamente. Kitty jamais teria encontrado seu alvo se não fossem pelas coordenadas precisam que lhe foram enviadas.

Ela aparentemente contrata um nativo, mas apesar de forte, este parece ainda mais primal do que os outros. Poderia certamente fornecer-lhe uma boa assistência em combate, mas dificilmente seria bom em localizar-se pela geografia do próprio planeta.

A rebelde sabe aonde precisa chegar, mas também sabe que nunca é uma boa ideia atacar durante o dia. Em contrapartida, seria difícil convencer uma criatura daquelas a esperar até um melhor momento. A missão é mais complicada do que parece, e raramente seria dada a alguém de menor posto como Kitty. Alguém deve realmente confiar nela.

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤAinda que a água estivesse envenenada você era muito burro para sequer desconfiar disso. Você simplesmente virou todo o conteúdo da garrafa de uma vez dentro da sua boca gigantesca, num movimento tão brusco que parecia que iria devorar até mesmo o recipiente. Acabou entregando o de volta e sem falar nada continuava a seguir os passos da esmeralda.

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤO pior é que você estragava o estilo furtivo da reptiliana com o seu pisar tão alto que sempre que se aproximava de uma árvore, metade de sua raiz saía para fora com o impacto e a outra metade fica tão inclinada que as aves saíam voando para longe somente com o seu aproximar. Afinal, você é um gigante até mesmo para os padrões do seu povo.

Num display de HUD localizado na armadura, Kitty pode ver um dúzia de palavras em um idioma desconhecido, provavelmente nativo. Além disso, há um logotipo no peitoral da proteção que marca a palavra: "Fawl".

O trajeto é complicado pois se trata de uma cadeia montanhosa até a localização indicada. Bayon tem o mínimo de conhecimento daquele ambiente e sabe que há uma empresa no local que só não foi derrubada porque oferece ouro e equipamentos tecnológicos para um poderoso clã em troca de proteção. É provavelmente uma das únicas estruturas de pé em Tuntau. É uma boa oportunidade para que alguém acabe com aquele centro de exploração.

Kitty por outro lado sabe que não poderá se aproximar furtivamente enquanto estiver ao lado daquele monstro, principalmente porque está se aproximando durante o dia, uma vez que ele é maior e mais barulhento do que a média dos Haytok.